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A rede comunitária Portal Sem Porteiras foi criada em 2018 por moradores do bairro Souzas, em Monteiro Lobato, uma pequena cidade brasileira de com menos de 5 mil habitantes no estado de São Paulo. Esta é  uma região de montanhas e muito verde, mas essa linda paisagem representa um desafio quando o assunto é conectividade. 

Os habitantes de Monteiro Lobato nunca foram atendidos por grandes operadoras de telecomunicações. Pequenos provedores já atenderam a cidade, mas alguns acabaram desistindo e o serviço é instável. E o preço oferecido por um deles, cerca R$ 300, era muito alto para uma população cuja renda média é de R$ 1460,00 – representava 20% da renda média, conforme mostrou essa reportagem do jornal Folha de S. Paulo

Um local que requer investimento em infraestrutura para atender uma população relativamente pequena pode não ser atrativo a partir de uma perpectiva de negócios. Mas quando pensamos na perspectiva do direito à comunicação, a falta de conectividade se torna uma lacuna que pode acentuar desigualdades.  Foi nesse cenário que a rede comunitária PSP, que nasceu como uma associação de moradores sem fins lucrativos, se encaixou perfeitamente. Esta rede comunitária foi selecionada no programa de financiamentos da iniciativa Redes Locais (LocNet) em 2021, com um projeto focando na sustentabilidade e manutenção da rede num momento crítico em meio a pandemia de COVID-19. Em fevereiro de 2024, durante uma visita ao bairro onde a PSP opera, pudemos ver como esta rede é importante para os moradores nos dias de hoje.

Hiure Queiroz, um dos fundadores da rede PSP, e a professora Carolina Ribeiro Defino, que usa a conexão comunitária, retiram o excesso de vegetação em torno de uma das antenas durante nossa visita ao PSP em fevereiro de 2024. 

A ideia de criar a PSP veio de uma oportunidade: um dos moradores do bairro, Hiure Queiroz, tinha conhecimento técnico sobre redes e tecnologias livres e fazia parte da Coolab — um coletivo brasileiro trabalhando com telecomunicação comunitária que tinha acabado de receber um financiamento da Mozilla em 2018 para criar novas redes no país. Alguns moradores do bairro decidiram, assim, aproveitar esse recurso para criar a rede. Esse ponto de partida, foi completando por processos de articulação comunitária para envolver mais pessoas. Um destaque foi o projeto Nós por Nós, realizado em 2019 para promover a apropriação de tecnologias da informação e comunicação por mulheres do território. Com o objetivo de tornar a rede comunitária realmente coletiva, "o primeiro desafio foi fazer com que as mulheres se engajassem em ações e diálogos sobre um universo que lhes parecia estranho", apontam as coordenadoras do projeto, Luisa Pereira e Marcela Guerra, na apostila do Nós por Nós

Atualmente, a rede possui uma intranet e promove a conexão compartilhada à internet, comprada de duas fontes: uma conexão satelital e outra fornecida por um pequeno provedor  local. Assim, a PSP atende cerca de 120 pessoas e seu custo para os moradores varia dependendo da possibilidade de cada um — sendo a média em torno de R$ 30,00. Sem haver finalidade de lucro, o valor arrecadado serve para pagar a conexão com a internet, remunerar as pessoas envolvidas na manutenção técnica da rede, quando possível, e fazer a substituição de equipamentos, como uma antena que havia sido queimada por um raio no começo de 2024. A PSP também libera seu sinal de Wi-Fi gratuitamente em uma praça, que é um ponto de encontro do bairro. A sustenabilidade financeira, segundo Hiure Queiroz, ainda é um desafio, mas com os apoios de organizações da sociedade civil a rede está em plena condição de seguir operando. Depois da Mozilla, o PSP também fez parcerias com outras intituições, incluindo a APC e Rhizomatica por meio de apoios da iniciativa Redes Locais, como a mencionada acima e outro anterior destinado ao projeto Nós por Nós.

Rede comunitária ganha sentido no dia a dia das pessoas

A rede comunitária foi importante para a comerciante Stephany Godói, que aumento suas vendas em 50% ao poder aceitar outras formas de pagamento que não apenas dinheiro, como mostrou a reportagem da Folha de S. Paulo. Ou para Marcus Lisboa, um dos responsáveis pela manutenção técnica da rede, que encontrou nesse serviço uma alternativa de aprendizado e renda. Também para a professora Carolina Ribeiro Defino, que mudou para Monteiro Lobato há uns anos e usa a rede para trabalho e contato com parentes e amigos que não vivem no bairro. 

Em conversa com os moradores, os exemplos da importância da rede são muitos: na pandemia as aulas escolares passaram a ser parcialmente online. A região de Monteiro Lobato já sofreu com incêndios, fortes chuvas e inundações – acontecimentos que têm se tornado mais frequentes segundo os moradores diante do agravamento da crise climática. E ter um sinal de celular ou internet Wi-Fi foi crucial em momentos de emergência enfrentados. No dia a dia, o acesso à internet pode signifcar o acesso também a  alternativas de estudo, entretenimento e geração de renda. E, sobretudo, uma oportunidade de compartilhar os conteúdos e a cultura local mundo afora.

Mais do que preencher uma lacuna deixada por operadores comerciais, a rede comunitária representa uma forma mudar a lógica da conectividade e das tecnologias digitais como algo que vem de fora para dentro dos territórios. Pelo contrário, são as pessoas vivendo aquele determinado contexto que devem decidir como, onde e por que a rede irá acontecer.

A rede comunitária Portal Sem Porteiras também usa painéis solares como opção de fonte de energia. 

A PSP, por exemplo, tem sido um espaço para a experimentação e inovação tecnológica, como para a criação de torres de bambu enquanto uma alternativa para erguer antenas mais barata e sustentável do que as torres de aço. O PSP tem contribuído com outras redes comunitárias no Brasil e em outros países do Sul global, compartilhando seu conhecimento por meio de oportunidades criadas para a troca de aprendizados, como em comunidades de prática e encontros entre iniciativas latino-americanas. Para além da conexão com a internet, a PSP conta ainda com um servidor local, criado para abrigar serviços disponíveis na intranet dessa comunidade. Esse servidor também hospeda a produção de conteúdo e conhecimentos locais, algo que não faltou ao longo dos anos: o Nós Por Nós, por exemplo, desenvolveu um podcast dedicado a dialogar com as mulheres do território durante a pandemia e uma áudio novela chamada "O Segredo da Montanha", que usa a ficção para abordar problemas reais enfrentados pelas mulheres, como a violência doméstica.

Do local ao nacional

A experiência do PSP mostra que existem alternativas viáveis de conectividade e comunicação comunitária, que são necessárias para enfrentar a persistência da brecha digital no Brasil e no mundo. Com uma trajetória marcada por conquistas e desafios, hoje o PSP atua numa articulação de representantes da sociedade civil junto à agência reguladora, a Anatel, para criar um ambiente de apoio às comunidades que estão conectando a si mesmas por meio de políticas públicas, regulação e alternativas de financiamento via Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações. A existência de um ambiente regulatório que reconheça o papel das  das redes comunitárias pode incentivar também o apoio de pequenos e grandes provedores de serviços de internet.

"É importante ressaltar que o PSP é uma rede comunitária que atende esse nosso contexto, e que existe uma grande diversidade de redes comunitárias no Brasil, como em territórios quilombolas, indígenas e tradicionais", ressalta Potyra Aguiar, representante do PSP no Grupo de Trabalho criado pela Anatel sobre o tema. Com essa fala, ela aponta pra importância da política pública criar condições de apoio reconhecendo e respeitando a autodeterminação das comunidades país a fora.  

Fotos: Débora Prado

Este artigo foi escrito com informações compartilhadas pelo Portal Sem Porteiras como parte do projeto "Conectando os desconectados: Apoiando redes comunitárias e outras iniciativas de conectividade baseadas na comunidade" para a coluna Semeando a Mudança, que apresenta as experiências dos membros e parceiros da APC que receberam financiamento por meio desse e outros projetos e iniciativas da APC. As informações foram complementadas com outras atualizações compartilhadas durante uma visita à rede comunitária em fevereiro de 2024.

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